Habemus farofa – e das boas!

Oi, menine! Tá boa, santa?

Depois de um longo e tenebroso inverno no deserto da música pop contemporânea, fomos todas, todos e todes contemplados com farofa da melhor qualidade. Em tempos de pandemia e isolamento social, Lady Gaga com o seu Chromatica reafirma o poder da arte de nos fazer abstrair e refletir sobre nossas subjetividades. Os fãs da cantora e o público LGBTI+ que estavam sedentos pela volta da Mother Monster à sua essência pop respiram – e dançam – aliviados.

É difícil escolher na discografia de Lady Gaga uma música ou um álbum que seja fundamental, uma vez que, desde 2008, fomos apresentados a diferentes facetas de uma mesma artista. Adepta de experimentações, nesses mais de dez anos de carreira, Lady Gaga se consolidou como uma das últimas expoentes da música pop a manter o fôlego em uma indústria que é implacável com as mulheres. Gostemos ou não, Lady Gaga sempre foi coerente com as propostas de suas eras, sendo a última cantora com relevância internacional a utilizar com primor e adequar ao seu tempo a fórmula concedida por Madonna nos anos 1980: conceitos bem amarrados; turnês espetaculares; videografia impecável; militância; e parcerias contundentes com as artes plásticas. E toma cultura, porque com ela nada é superficial!

Jazz, eletrônico e country são alguns gêneros musicais que ouvimos na voz de Lady Gaga nos últimos anos. Em 2018, acompanhamos sua bem sucedida investida no cinema, quando viveu Ally, em Nasce Uma Estrela (A Star Is Born), e lançou o smash hit “Shallow” – ganhador do Oscar de melhor canção original e melhor música para filmes no Globo de Ouro em 2019. Desde 2013, Lady Gaga deixou o pop um pouco de escanteio, talvez por precisar de um tempo para se recuperar do tombo pós-Artpop, álbum incompreendido à sua época, mas hoje amado por grande parte dos fãs, ou seja, foram sete anos sem Gaga nos alimentar com uma farofa. Mas aí, no início de 2020, fomos convidados a embarcar em uma viagem rumo ao universo Chromatica: o #LG6 estava chegando.

O álbum é dividido em três atos, Chromatica I, II e III, que eu chamaria de Conceito, Coesão e Aclamação. Em Alice, Lady Gaga dá o tom de todo o disco, a faixa nos impele a buscarmos nosso “eu” interior, a partir da house music noventista, em uma viagem surrealista para dentro de nossos corpos e nossas mentes; a jornada em busca da liberdade começa quando o DJ aperta o play, “DJ, free my mind”, pede a cantora.

Em Stupid Love encontramos a música mais chiclete do álbum, uma vez que, não era para menos, a faixa tem como um dos compositores e produtores o hitmaker Max Martin. Foi com essa canção que o universo Chromatica nos foi apresentado – gerando muita estranheza em um primeiro momento, algo característico da carreira da Gaga, mas que logo passou, pois não tem como não se deixar dominar pelas letras e pelo conceito visual extremamente pop.

E a Lady Gaga faz tudo, até chover! Ela preferia estar seca, mas pelo menos está viva: é essa a mensagem que fica em Rain On Me. A parceria com Ariana Grande, um dos maiores nomes da música pop contemporânea, já nasceu gigante. É um hino futurista e inspirador, nos transmitindo aquela pontinha de esperança tão necessária atualmente. Vale destacar aqui o tamanho da faixa (3:02), seguindo o padrão do restante do álbum e a tendência da era do streaming: músicas mais curtas, para serem ouvidas mais vezes e, assim, alavancarem os charts. Somos servidos com conceito, arte, mensagem empoderada, mas também estratégia, fundamental para que um produto pop tenha êxito.

Nossa Gaga amadureceu e agora é uma mulher livre. Lady Gaga reivindica a liberdade do seu corpo e o acalenta novamente após superar um abuso sexual. Tudo bem que grande parte dos fãs gostou mais da versão demo vazada, mas Free Woman tem uma presença marcante em Chromatica. Com Fun Tonight chegou a hora de chorar na pista de dança – ou em qualquer cômodo de nossas casas – se prestarmos atenção na letra. O eletropop é a trilha para Gaga cantar que não está feliz e, em um tom quase confessional, expor nuances da depressão.

Depois do interlúdio Chromatica II, 911 se apresenta com uma das letras mais sombrias do disco, com um instrumental que nos remete aos tempos áureos do The Fame Monster ou do Born This Way. A canção polarizou a fanbase, teve quem amou e quem odiou o pedido de socorro de uma cantora que se vê como a sua maior inimiga. A vibe da “antiga” Gaga continua em Plastic Doll, com Skrillex na produção e na composição, quem esperava um eletrônico com batidas marcantes se decepcionou. Depois de uma sequência de faixas extravagantes, nesta chegamos àquele momento fatídico em que o disco parece perder o fôlego.

Provavelmente colocada ali estrategicamente, Sour Candy, parceria com o grupo sul-coreano BLACKPINK, traz vida novamente ao álbum como uma das melhores músicas do Chromatica. Em uma semana, o áudio da canção no YouTube recebeu quase 50 milhões de acessos, ou seja, o single promocional tem tudo para quebrar a internet, se virar um single oficial com videoclipe. O eletropop na medida, a curta duração da música, e o encontro de uma das vozes mais poderosas do pop com um dois maiores produtos culturais da atualidade parecem ser a receita pronta para um grande hit global.

Olha a coesão aqui, diva pop que se preze tem que se autorreferenciar. A faixa Enigma tem o mesmo nome da residência que Lady Gaga realizou em Las Vegas entre o fim de 2018 e o início de 2020. Sabe aquela história de menos é mais? Em Enigma é assim, sem muita extravagância, se assemelha a muitos clássicos da música disco.

Ironicamente, em um primeiro momento, Replay parece ser uma canção que não voltaremos a ouvir e que está ali para preencher o espaço – o que é comum em muitos álbuns. Ledo engano, a faixa é uma das mais coesas, ainda mais se considerarmos a letra que nada tem de festiva. Gaga nos fala sobre as cicatrizes de sua mente e da cova que cava para si mesma todos os dias, em replay.

Chromatica III, o terceiro interlúdio, nos entrega a música Sine From Above, parceria com Elton John. A maior música do álbum faz jus à sua duração, nos presenteando com um encontro potente entre duas lendas vivas da cultura pop. Elton John é daqueles artistas que deveriam viver para sempre, por sua relevância e por sua versatilidade, uma vez que em Chromatica sua voz se encaixa perfeitamente em uma música eletrônica. Todavia, o grande trunfo da parceria é apresentar e fazer Sir Elton John ser notado por uma geração que, talvez, não o valorize suficientemente.

Em 1000 Doves, Lady Gaga caminha para o término de sua jornada em busca da liberdade, dentro do universo Chromatica, e é incisiva: “Se você me ama, então me liberte; E se não, então amor, vá embora; Me liberte.” A música mais lírica e sensível contem, ao mesmo tempo, uma das mensagens mais marcantes.

O álbum chega ao fim com Babylon, uma síntese de todas as referências que permearam as faixas do Chromatica. O eletrônico dos anos 1990, o sax dos anos 1980, o vocal robótico característico de Gaga, vocais de apoio que lembram o hip-hop noventista, um coral, enfim, a canção incorpora diferentes elementos que nos remetem à mística de Babilônia, antiga cidade da Mesopotâmia – famosa por ser conhecida como o endereço da Torre de Babel, cujo mito de origem é usado para explicar as diferentes línguas faladas no mundo. Gaga celebra o fim da jornada pelo universo Chromatica nos convidando a comemorar como no tempo Antes de Cristo (AC) – você sabe o que é bacanal? – e alertando sobre a natureza prejudicial das fofocas na narrativa bíblica babilônica.

Só nos resta louvar, agradecer e aclamar a Mother Monster por esse que é um dos seus melhores trabalhos, mostrando que após dez anos de carreira continua impecável e coerente. Chromatica reflete sobre assuntos sérios pelos quais Lady Gaga é militante, como o abuso sexual e a saúde mental, mas não deixa de ser otimista e atual; é repleto de hinos pop, um álbum redondinho como não se ouvia desde o Lemonade (2016), de Beyoncé.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional do Coletivo Movimento Construção – Parada LGBTI+ de Londrina.