Filho de um aviador e de uma professora do primário, João Nery, nasceu em 1950, na cidade do Rio de Janeiro, sendo o terceiro entre quatro filhos. Teve uma infância triste, pois vivia sendo hostilizados pelos colegas no parquinho e na escola. Segundo sua biografia, o mesmo não entendia porque o tratavam como menina e porque não o encorajavam a ter uma profissão que era tido, na época, como de homem.
Possuía vergonha do corpo e nenhuma vaidade quando criança, andando despenteado e com roupas folgadas, sem marcar o corpo, tendo apelidos machistas dos colegas de turma. Aos 9 anos, sua mão o levou à psicóloga, tentando entender porque ele insistia em ser tratado como menino e a conclusão da psicóloga o frustrou ainda mais, pois segundo ela, João tentava imitar o pai, por ser filho do meio. Desta forma, a psicóloga disse que a mãe deveria forçar João a usar roupas e reforçar o comportamento feminino quando ele se comportasse daquele jeito.
Aos 13 anos, começou a se dedicar aos saltos ornamentais, onde tentava ganhar massa muscular, mas também elevar sua autoestima. João fez quatro saltos da série obrigatória e se consagrou campeão nacional, pelo Clube Fluminense. Saltando até os 16 anos, acabou por ganhar 29 medalhas em competições da categoria.
Em 1964, seu pai foi exilado no Uruguai por três anos, situação que forçou a divisão da família. João então com 15 anos, ficou na casa de sua tia Estela, enquanto frequentava o colégio na Tijuca. Entrar na adolescência foi um período bem difícil para João, pois com o florescer dos hormônios, o mesmo não se sentia confortável com as mudanças que ocorriam.
No Uruguai, ao passar uns meses de férias com o pai, João conheceu Darcy Ribeiro e sua esposa Berta Gleizer Ribeiro, com quem aprendeu antropologia, arqueologia e sociologia. Seu pai só voltaria ao Brasil quando João estava com 17 anos, mas nunca mais pode voar.
Aos 19 anos de idade, ingressou na faculdade de psicologia, onde entrou em contato com um mundo repleto de teorias acerca da sexualidade, lendo sobre a conduta sexual e suas variações determinadas pela cultura e pela sociedade. Na década de 70, entrou no auge a moda unissex, o que foi uma “mão na roda” para João, que podia tornar a sua figura mais ambígua sem causar estranhamento nas pessoas. Foi representante de turma, mas como a época era de ditadura, o diretório acadêmico foi fechado pela faculdade. O decreto de número 477, uma lei de exceção, enquadrou João por “atentar contra a segurança nacional na universidade” e isso poderia afastá-lo das aulas por até 5 anos. Um advogado o defendeu sem cobrar e conseguiu absolvê-lo.
A situação em casa se tornou insustentável. Apesar de amar a mãe, João queria um lugar só seu e começou a trabalhar de taxista depois das aulas na faculdade. Foi nesse período de independência financeira que assumiu a identidade de gênero masculina.
Em 1975, viajou por um mês para a Europa. Com pouco dinheiro, percorreu o continente de trem, em geral trens noturnos, onde a viagem era mais barata. Foi em uma livraria de Paris que João encontrou uma revista científica chamada Sexualité. Um dos artigos era de um médico que trabalhava com cirurgias de redesignação sexual, feitas em alguns países com sucesso. Apesar de falar especificamente de mulheres trans, ele relatava que a técnica poderia ser adaptada para homens trans também, citando países precursores na técnica, como Estados Unidos, Inglaterra, Suécia e Dinamarca, que reconheciam a necessidade de mudança de identidade após a cirurgia.
Retornou ao Brasil pouco depois, começando um mestrado em Psicologia, dando aulas em três faculdades. A cirurgia de redesignação sexual não era feita no Brasil, onde era considerada uma mutilação. Uma colega psicóloga lhe indicou um endocrinologista do Hospital Moncorvo Filho que lhe definiu as diferenças entre a transgeneridade e homossexualidade. Lá, João entrou para a triagem para fazer os exames clínicos que pudessem lhe encaixar no tratamento cirúrgico.
Animado com a possibilidade da cirurgia, sua família demonstrou oposição, especialmente seu pai. Sua mãe começou a implorar para que não fizesse a cirurgia, dizendo que aceitaria uma “filha homossexual, mas não uma sem nenhuma identidade”. O laudo do qual a sua cirurgia dependia, porém, foi negado pelo psiquiatra que não se convencia de que transgeneridade existisse. Por sugestão de seu médico, ele procurou outro psiquiatra que fez um parecer favorável. A cirurgia foi em uma clínica em São Paulo, feita de maneira clandestina, sem ficha médica. A terapia hormonal começou em seguida, mas esta cirurgia não removeu útero e ovários e o cirurgião não sabia quem poderia realizá-la.
João foi cobaia para tratamentos, já que no Brasil da época não havia protocolos nem estudos a respeito dos efeitos da terapia hormonal e se tornou um grande crítico do sistema de saúde brasileiro pelas lacunas e falta de assistência aos pacientes transgêneros. Foi uma obstetra e ginecologista conhecida da família que indicou um médico disposto a realizar as cirurgias restantes.
Alguns anos depois, o seu relacionamento de longa data terminou e João ficou sozinho. Mas na universidade, a carreira decolava. Em 2018, recebeu o título Doutor “Honoris Causa” por sua atuação e militância, da Universidade Federal do Mato Grosso, se tornando, dessa forma, o primeiro homem trans a receber tal título em todo o mundo (o pedido impetrado em 2017, pelo Prof. Dr. Danie Marcelo de Jesus, foi votado e unanimamente aceito por aquele colegiado no ano seguinte). Era convidado para congressos e simpósios.
João se tornou ativista pelos direitos LGBT, principalmente da população transgênero. Um projeto de lei do deputado Jean Wyllys e da deputada Erika Kokay leva o seu nome. Baseada na Lei de Identidade e Gênero da Argentina, o projeto garante o direito do reconhecimento a identidade de gênero de todas as pessoas transgênero no Brasil, sem necessidade de autorização judicial, laudos médicos nem psicológicos, cirurgias nem terapias hormonais.
Seu livro Viagem Solitária – Memórias de um Transexual 30 Anos Depois, relata a sua jornada na descoberta da transexualidade, dos tratamentos e da aceitação de amigos e familiares. O livro serviu de inspiração para a composição do personagem Ivan, da novela A Força do Querer, escrita por Glória Perez, e exibida na TV Globo em 2017.
Em agosto de 2017, João descobriu um câncer de pulmão. Fumante desde os 15 anos de idade, ele se submeteu à quimioterapia. Em setembro de 2018, João revelou nas redes sociais que o câncer tinha atingido o cérebro e ele morreu em Niterói, em 26 de outubro de 2018, aos 68 anos.
A trajetória de Nery rendeu-lhe um livro em sua homenagem, intitulado “Estudos sobre gênero: identidades, discurso e educação – homenagem a João W. Nery” e compilado pelos professores universitários Jesus, Carbonieri e Nigro, apresentando vários autores trans em seus capítulos e dissertando sobre identidade e teorias do discurso em educação.
Mark Sales
Colunista - Coluna LGBTs da História
Estudante de Sociologia pela Universidade Paulista. Ativista LGBTI+. Membro do Coletivo Movimento Construção.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional do Coletivo Movimento Construção – Parada LGBTI+ de Londrina.
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