
Em artigos anteriores nesta coluna promovi reflexões sobre quem são as pessoas trans não-binárias (bit.ly/antinorma1 ) e porque é importante o uso de propostas de linguagem mais inclusiva (bit.ly/antinorma2). Estas reflexões pedem discussões aprofundadas exatamente por conta de uma mesma problemática que permeia a nossa sociedade: o exorsexismo.
A principal proposta da Antinorma tem sido a de colocar-se como um espaço de educação “anti-exorsexista”, ou seja, um espaço de ativismo contra o exorsexismo. Desta forma, creio que se faz necessário iniciar uma discussão sobre este conceito, a fim de entendermos qual é o problema em si, além de como e porque devemos combatê-lo e desconstruí-lo.
Bem, exorsexismo nada mais é que a opressão sofrida por pessoas que não se identificam dentro do padrão “homem ou mulher”. Trata-se da ideia de que existem somente duas possibilidades para o gênero e que, qualquer coisa que fuja a essa norma não é válida, que é “gênero inventado”, “criação pós-moderna”, ou alguma outra dessas baboseiras transfóbicas e infundadas que você já deve ter ouvido por aí.
Em primeiro ponto, vale ressaltar que o exorsexismo é uma ideia fortemente ocidental e colonizadora. Ao longo das histórias das sociedades humanas sempre existiram identidades que ultrapassavam essa barreira binária e muitas culturas simplesmente não tinham a menor dificuldade em lidar com pessoas que se identificavam com essas identidades. Na verdade, a própria noção de “cis” e “trans” está dada na lógica ocidental na qual o gênero das pessoas é designado logo após seu nascimento com base em suas genitais. É exatamente essa lógica que tem gerado dificuldades para lidar com dissidentes que não se identificam com aquele gênero imposto, ou mesmo com pessoas cujas genitais não se enquadrem no padrão “pênis ou vulva” (como é o caso de algumas pessoas intersexo, que muitas vezes são submetidas a mutilação genital no período pós-natal para que se enquadrem no padrão). Há, contudo, outras culturas em que não há diferenciação entre pessoas que se identificam com o gênero comumente associado à sua genital e aquelas que não se identificam, uma vez que a noção de identidade é bem consolidada.
A lógica que nos divide entre “aquelus que se identificam com o gênero imposto” (pessoas cis) e “aquelus que não se identificam com o gênero imposto” (pessoas trans, não-cis) reforça ainda mais a ideia exorsexista, porque tende a estabelecer como válidos somente os gêneros que pessoas cis possuem. Nesse sentido, o genitalismo (ideia que valoriza a estrutura genital como definidor único da identidade) se mostra muito presente, a partir da concepção de que “um gênero só existe se alguém foi designade a ele no seu nascimento”. Em culturas que não estabelecem as genitais como padrão para designação do gênero é muito mais simples assimilar a existência para além do binário, uma vez que os órgãos genitais não são dados como parâmetros definidores. Dito de outra forma, a lógica de “fêmea” e “macho” associades a ideia de “mulher” e “homem” só faz parecer que não existem outras possibilidades e que tudo está restrito à sua genital, e não à sua identidade, quando na verdade conceitos como “homem” e “mulher” estão muito mais pautados em noções culturalmente construídas, como a Antropologia e outras Ciências Humanas vêm demonstrando a décadas.
Quando se conhece uma nova pessoa, ou mesmo quando se vê alguém na rua, a tendência é fazer uma leitura sobre qual seu gênero. A questão é que a grande maioria das pessoas faz essa leitura a partir do critério “homem ou mulher”. Talvez, em alguns casos, haja confusões acerca do gênero de uma pessoa que possua, por exemplo, uma expressão que pareça “ambígua”. Contudo, dificilmente a leitura aponta para outros gêneros. Aí está a influência do exorsexismo. Afinal, por qual outro motivo as pessoas não podem ser lidas automaticamente como, por exemplo, “gênero neutro”, “andrógino” ou mesmo “maverique”, que são identidades e expressões não limitadas a “homem ou mulher”, mas igualmente válidas?
Em ocasiões em que alguém diz “sejam todos e todas bem-vindos e bem-vindas”, ou quaisquer tentativas de contemplar a totalidade das pessoas usando o masculino e o feminino, verifica-se a influência do exorsexismo. Afinal, há pessoas que não se identificam, e não utilizam para si, nem pronomes e flexões “masculinos” (ele, todos), nem “femininos” (ela, todas). Assim, imaginar que o uso de ambos os pronomes contemplará a todes é um equívoco, pois não contempla qualquer outra pessoa que não utilize estes sistemas “mais comuns”. Nesse sentido, a Neolinguagem e propostas de sistemas mais inclusivos são também alternativas na luta contra o exorsexismo.
Mesmo quando pensamos nos gêneros “homem” e “mulher” como opostos há também exorsexismo. Por mais que alguns discursos considerem diversidades para além destas duas, quando ambas são colocadas como dois extremos, como os dois pontos máximos e opostos de um sistema, fica subentendido que todas as identidades estão dadas entre esses dois pólos. De fato, há identidades não-binárias que são fluídas entre eles, que se encontram em uma combinação ou intersecção entre “mulher” e “homem”, que se apropriam destes conceitos para se explicarem (e como já apontei no primeiro artigo dessa coluna, geralmente essas identidades são contempladas pela faixa roxa da bandeira não-binária). Porém, pressupor que todo o espectro de gênero está dado pela oposição desses dois conceitos (ou pontos), e não que eles fazem parte de um todo maior e mais complexo, reduz as existências não-binárias e desconsidera identidades que, por exemplo, são absolutamente independentes dessas ideias. Exorsexismo.
Mesmo quando algumas pessoas afirmam categoricamente, não por simples reprodução, mas por convicções, que o gênero “é sim somente homem ou mulher”, muitas vezes se amparando em argumentos de que em outras culturas pode ser diferente mas que na nossa é esse sistema que impera, fica claro o exorsexismo e consequentemente a transfobia. Por mais que a ideia binária-genistalista predomine em nosso contexto e que sejamos permeades por exorsexismo a todo tempo, não se deve simplesmente desconsiderar as existências dissidentes como se não existissem, porque existem. Assim, o argumento se mostra absolutamente sem materialidade porque se ampara mais no exorsexismo do que na vida real, onde pessoas que não estão dentro do padrão “mulher-homem” existem e suas existências revelam a incompatibilidade e incoerência desse discurso.
É importante destacar que, como outras opressões, o exorsexismo deve ser considerado sempre acompanhado de outros recortes, como étnico-racial e de classes. É evidente, por exemplo, que uma pessoa trans não-binária negra e periférica tem muito mais dificuldade de ter seu gênero reconhecido do que uma pessoa trans não-binária branca e mais privilegiada. Isso não significa, contudo, que essa segunda pessoa não seja afetada pelo exorsexismo e que não ocorram tentativas de deslegitimação de sua identidade.
Por último, caso você tenha se interessado pela discussão, queira se aprofundar na reflexão sobre o exorsexismo e buscar maneiras de desconstruí-lo em seu cotidiano, deixo abaixo alguns links com ótimos textos escritos por outres não-bináries. O processo de desconstrução é sempre complexo, mas é essencial se você considera a importância da luta por uma sociedade mais justa e livre de preconceitos e opressões. Nesse sentido, como apontei no início, a proposta desta coluna é exatamente essa: militar contra o exorsexismo, além de estimular reflexões e dar visibilidade a pautas pouco difundidas sobre as diversidades. Esta é a ANTINORMA.
Referências:
“Tópico sobre Exorsexismo”, em Fórum Orientando, por Aster. Disponível em: https://forum.orientando.org/thread-47.html
“O que é exorsexismo”, em Ume Garote Alternative, por Vitor Rubião. Disponível em: http://umegarotealternative.blogspot.com/2018/12/o-que-e-exorsexismo.html
“Dica para pronomes e identidades de gênero”, em Orientando, por Aster. Disponível em: https://orientando.org/2016/09/dica-para-pronomes-e-generos/
“O que é intersexo?”, em Orientando, por Aster. Disponível em: https://orientando.org/o-que-e-intersexo/

Urse Lopes Brevilheri
Colunista - Coluna Antinorma
Graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina. Colaboradora do Laboratório de Estudos sobre Religiões e Religiosidades (LERR-UEL). Extensionista pelo projeto Práxis Itinerante.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional do Coletivo Movimento Construção – Parada LGBTI+ de Londrina.
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