A linguagem constitui um aspecto tão comum em nosso cotidiano que, muitas vezes, nem imaginamos que possa ser objeto de reflexões.
Importa inicialmente destacar que grande parte da nossa comunicação está dada, exatamente, nessa instância, e assim sendo, certamente adquire características políticas e possui em sua composição elementos mais complexos do que a simples atribuição de significados.
Essa questão é tão relevante que tem sido tema de discussões desde a Antropologia até a Psicologia: A língua reflete aspectos da cultura de sua sociedade como um todo. Na verdade, talvez língua e cultura estejam diretamente associadas. E uma sociedade com seus estigmas e preconceitos provavelmente os reproduz na linguagem.
É exatamente neste ponto em que se coloca a questão central deste artigo. Entendendo que há aspectos muitas vezes problemáticos assumidos pela língua, surgem então propostas de sua alteração. Nesse sentido, abordo ao longo do texto uma perspectiva de novas possibilidades para a linguagem que vem sendo denominada Neolinguagem – destacando que não pretendo aqui, ensinar o uso de Neolinguagem e sim fazer uma discussão e apresentá-la enquanto conceito, em defesa de seu uso. Entretanto, ao final deste texto, deixo links úteis para quem quiser aprender a utilizá-la.
Neolinguagem, nos termos de mi amigue Vitor Rubião, em seu blog Ume Garote Alternative, é “uma proposta de criar e implementar uma alternativa linguística de natureza neutra ou sem associação com gêneros (…)”.
Basicamente, trata-se de uma resposta prática para duas questões que são vistas como problemáticas em nosso sistema de linguagem. A primeira delas se relaciona ao aspecto político/cultural da língua sobre o qual eu dissertava no início deste texto, que é a questão da interpretação do masculino como “forma neutra” na língua portuguesa. Por exemplo: quando temos um grupo formado somente por homens, utilizamos comumente o pronome eles; quando temos um grupo formado somente por mulheres, utilizamos elas. Contudo, quando nos referimos a um grupo diverso, onde há pessoas de mais de um gênero, a norma padrão nos orienta a usar eles. Mas por quê?
Exatamente porque a língua se dá também como um instrumento de opressão e reflete características patriarcais. Assim, há quem também proponha a inversão, como forma provocativa e anti-patriarcal, adotando o chamado “feminino universal”, substituindo situações em que o masculino é usado como forma neutra pelo feminino. Por exemplo, sempre dizer “boa noite a todas”, mesmo que o grupo seja diverso em gêneros.
É neste ponto que entramos na segunda questão problemática do nosso sistema, notando então que mesmo o uso do “feminino universal” não dá conta de resolvê-lo: a lógica exorsexista de que somente duas variações seriam suficientes para contemplar todas as pessoas. Exatamente isso caracteriza o “exorsexismo”: assumir que não existem outras possibilidades além do binário.
Pessoas Não-Binárias que não se identificam nem com o masculino, nem com o feminino existem (se você tem dúvidas, sugiro a leitura do primeiro texto que escrevi na Antinorma ( bit.ly/antinorma1 )) e, estando fora dessa lógica dual, muitas vezes não se sentem contempladas com as variações de pronomes de terceira pessoa da norma padrão de nossa língua: ele(s) ou ela(s), ou com suas flexões de adjetivos e substantivos (bonita/bonito; amigo/amiga). Surge, assim, a necessidade de outra flexão, que não esteja associada a nenhum gênero diretamente. É aqui que a Neolinguagem surge como proposta prática.
Há cerca de 11 anos, entendendo uma ou outra destas problemáticas (por vezes, ambas), as pessoas começaram a adotar, principalmente na internet, artifícios como o uso do X ou do @ como opções de neutralização. Por exempo, “sejam todxs bem-vindxs”, “[email protected]”. E isso acabou inclusive se popularizando nos espaços de apoio à diversidade e às lutas sociais.
De alguma forma, essas tentativas já podem ser caracterizadas como Neolinguagem. Contudo, com o passar dos anos, foram se revelando cada vez mais problemas em relação a sua utilização. Entre eles, a dificuldade enfrentada por aquelus que utilizavam aplicativos leitores de tela, a exemplo des deficientes visuais, que não tinham seus softwares programados para fazerem essa leitura. Outras situações envolviam relatos de pessoas com dislexia que afirmavam não conseguir compreender as palavras escritas com aqueles elementos. Foi a partir de situações desta natureza que novas formas de Neolinguagem foram propostas.
Particularmente, tenho apreço pelo uso do pronome “elu” e das flexões baseadas no uso do “e”, a exemplo de: “elu é mi amigue”, “sejam todes bem-vindes” sendo, inclusive, a forma que utilizo aqui na Coluna e na vida cotidiana, tendo adotado até como um de meus pronomes pessoais. Assim, caso possua interesse em aprender como utilizar esta alternativa, deixo aqui um artigo de 2018 de Vitor Rubião ( http://umegarotealternative.blogspot.com/2018/01/nova-linguagem-do-blog.html ), do momento em que elu passa a utilizar essa forma de escrita em seu blog Ume Garote Alternative.
Contudo, vale ressaltar que essa não é a única forma de Neolinguagem. Além de diferentes perspectivas que outres têm, há também pessoas que utilizam pronomes pessoais específicos. Dentre estus temos pessoas que utilizam, por exemplo, pronomes como “elz”, “ile”, “êla”, além de diversas outras possibilidades. Para aquelus que desejam se aprofundar nessa questão, recomendo o “testador de conjuntos”( https://orientando.org/conjuntos/ ), do site Orientando.Org: uma plataforma muito bacana que permite testar diferentes artigos, pronomes e flexões, em diferentes situações.
De qualquer forma, penso que cabe sempre respeitar os processos pessoais e coletivos que leva cada pessoa a escolher um conjunto de linguagens, seja como forma neutra geral, seja como conjunto pessoal. Penso, ainda, que a questão da Neolinguagem é algo que deve ser mais discutida em diferentes espaços. Afinal, o principal objetivo da língua é exatamente a comunicação e se, de alguma forma, ela gera exclusão e desigualdade, nada mais justo que seja colocada em discussão a fim de permitir que melhores alternativas possam ser propostas.
Por último, gostaria de ressaltar que aprender a usar Neolinguagem é uma questão de tempo, de treino e, é claro, de erros e acertos. Fomos sempre ensinades que só existiam as possibilidades da norma padrão. Poder contemplar novas perspectivas é, com certeza, incrível. Porém, sabemos que não será de uma hora para outra que abandonaremos o que sempre nos acompanhou, mas… Vale o esforço.
Se você ficou interessade em ler e entender mais sobre Neolinguagem, além dos links que já disponibilizei ao longo do texto, deixarei também, a seguir, algumas referências de outres autorus não-bináries que escrevem sobre isso. No final das contas, estamos juntes em luta pela construção de uma sociedade mais inclusiva para as diversidades. Este é o objetivo dessa coluna quinzenal: ensinar, discutir, informar e questionar. Esta é a ANTINORMA.
Referências:
“Em defesa da neolinguagem”, por Vitor Rubião ( http://umegarotealternative.blogspot.com/2018/07/em-defesa-da-neolinguagem.html )
“Dicas para se adequar a linguagem neutra / para se adequar a outras linguagens”, por Aster ( https://forum.orientando.org/thread-107.html)
“Linguagem Não-Binária ou neutra”, em Wiki Identidades ( https://identidades.wikia.org/pt-br/wiki/Linguagem_n%C3%A3o-bin%C3%A1ria_ou_neutra )
“Recursos de neolinguagem”, por Aster ( https://colorid.es/@Aster/101582049895057104 )
“Tudo, ou pelo menos muita coisa, sobre linguagem pessoal”, por Aster ( https://amplifi.casa/~/Asterismos/tudo-ou-pelo-menos-muita-coisa-sobre-linguagem-pessoal )
Urse Lopes Brevilheri
Colunista - Coluna Antinorma
Graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina. Colaboradora do Laboratório de Estudos sobre Religiões e Religiosidades (LERR-UEL). Extensionista pelo projeto Práxis Itinerante.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional do Coletivo Movimento Construção – Parada LGBTI+ de Londrina.
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