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Essa semana escolhi trazer para vocês um texto que escrevi há um tempo para uma mesa redonda com o tema sobre o preconceito dentro do próprio meio da comunidade LGBTQIAP+. Na história relato as vivências de João, que descrevo como uma bicha gorda, preta e da favela, com o intuito de fomentar diversos debates pertinentes sobre o preconceito que muitos são vítimas em nossa sociedade.
Almejo que vocês possam analisar e perceber os diversos João que passam pelas dificuldades de não se enquadrar dentro da norma social que dita um sistema cis-heternormativo, e o quanto prejudica o sujeito viver em uma sociedade excludente.
As reflexões e os debates a respeito do texto será na próxima semana, e desta forma, gostaria de opiniões e comentários sobre a história de João. Entre em contato comigo por e-mail para que possamos ampliar esse debate. Conto com vocês! Boa leitura!
João era uma bicha gorda preta da favela que nasceu prematuro e com deficiência visual devido sua mãe ter sido contaminada por toxoplasmose durante a gestação. João começou a usar óculos aos 05 anos de idade logo quando entrou na escola. João não enxergava muito bem, mas conseguia ouvir tudo com muita clareza. Na escola ouvia de seus colegas diversos xingamentos. Era a bichinha. O viadinho. Era o pretinho 04 olhos. Baleia. Favelado. Era a bicha preta. O boiola gordo. Ele não via, mas ouvia cada palavra de preconceito ao seu redor.
João foi crescendo, e com ele foram crescendo os insultos e diversos questionamentos a respeito de quem era e por não aceitar o que descobria de si mesmo. Aos 11 anos de idade na aula de educação física João percebeu algo diferente pelo seu único amigo na escola. Ele não sabia explicar o que estava sentindo, mas sabia que era errado aquele sentimento, por isso João se culpou. João chorou. João se mutilou. João se cortou, enquanto sentia a dor física aliviando sua alma de tanto sofrimento.
João se torturou por descobrir o amor. Por amar alguém que era errado, era pecado. Afinal sua mãe uma religiosa fervorosa um dia o ensinou que de acordo com suas crenças era abominável amar e desejar alguém do mesmo sexo. Que ele deveria crescer e casar com uma mulher e ter vários filhos. Era esse o sonho da mãe, mas era o pesadelo de João. Por mais que ele quisesse construir essa família dita como ideal, o seu coração pulsava por outra história. Seu desejo era amar um homem. Mas João não podia falar isso. João não podia sentir isso. Por muito tempo João não conseguia verbalizar o seu verdadeiro eu. Lutou com todas as suas forças contra quem ele realmente era.
Porque também aprendeu com o pai nas poucas vezes que o pai estava em casa já que ele vivia bêbado pelas vielas da cidade. Ele aprendeu que homem tem que ser macho. Tem que ser forte. É proibido chorar. É proibido gostar de boneca. É proibido lavar louça porque isso é coisa de mulher. É proibido ter sentimento.
Quando João tinha 08 anos de idade e estava em casa mexendo nas maquiagens de sua mãe, ouviu um barulho, era seu pai que chegou mais cedo do trabalho e estava bêbado, e antes mesmo de João levantar seu pai presenciou aquele momento de descobertas. Seu pai surtou. João apanhou. João sangrou. Ele não sabia porque seu pai estava com tanto ódio, ele não sabia porque apanhava. Ele era uma criança, e seu pai um monstro. Sua mãe chegou, mas nada fez, e após todo o seu sofrimento, João ouviu de sua mãe que o que ele fez era errado. Que maquiagem era coisa de menina, que homem não pode mexer nessas coisas.
João cresceu com baixa autoestima porque acreditava que só era bonito o homem branco viril com músculos aparentes, porque a olhar no espelho enxergava de forma embaçada a bicha gorda e preta com óculos fundo de garrafa. Ele queria ser feliz, mas a sociedade o julgava, dizia que era feio quem ele era por dentro e por fora.
João na adolescência teve poucas experiências com mulheres, afinal quem aceitaria transar com um preto gordo com fama de viado? Nem todo mundo gosta. Nem todo mundo quer. As relações foram um fracasso. Ele não sabia o que fazer. Ele não sabia o que sentia. Ele não queria, mas achava que precisava daquilo. Precisava provar para ele mesmo que era homem. Ele não gozou. Ele não gostou. A culpa veio à tona por não ser aquilo que a sociedade colocava como certo.
João foi ter sua primeira relação sexual com outro homem aos 17 anos de idade, quando conheceu um rapaz que talvez compreendesse um pouco de sua história. A princípio João sentiu algo estranho, algo que era bom, mas que não podia ser. Mais uma vez a culpa o dominou. Sentiu nojo de si por ter deitado com outro homem, por ter sentido o que não poderia sentir. Ele vomitou. Ele chorou. Ele mais uma vez se cortou. Enquanto via o sangue escorrendo pelo chão em meio as suas lágrimas. João teve a certeza que era gay quando se viu escondido nos diversos aplicativos de sexo procurando por alguém que o satisfizesse de diversas maneiras. Mas não encontrou. Se frustrou ao perceber que todos ali exibiam seus corpos como troféu. Que era preciso ser sarado para ganhar um like. Que o branco de olhos azuis chamava mais atenção. Ele não se encaixa naqueles perfis. Ele ainda continuava sendo a bicha gorda, preta e da favela.
Aos 18 anos em sua primeira balada gay ele estava ansioso, estava radiante acreditando que no meio daquelas diversas pessoas ele se sentiria só mais um, ele dividiria a dor com os demais entre um copo ou outro de bebida, e na pista de dança esqueceria todos os seus problemas. João mais uma vez se enganou. Ninguém olhou para ele. Os poucos olhares eram de desprezo. Eram olhares de rejeição. Era chamado de bicha passiva. Como se a forma como ele gozava definia quem ele era. Não podia ser afeminado. Ali ele também não podia ser verdadeiro consigo mesmo. Porque João não era bicha padrão. João não era heteronormativo. João era bicha gorda preta e da favela. João carregava nas suas costas o peso de não ser o que queriam que ele fosse. De repente ele viu que não era mais só a bicha, gorda, preta da favela, ele agora também era a bicha passiva. João não compreendia a rejeição por pessoas que tinha algo em comum com ele. João se questionava porque as pessoas apontava o dedo, sendo que todos ali também eram vítimas. Ele saiu correndo. Novamente ele chorou, e dessa vez se cortar já não era mais suficiente. João tomou diversos remédios com o intuito de acabar com tanta dor. Ele passou mal. Ele vomitou. Ele sobreviveu.
Com 20 anos ele já tinha desenvolvido ansiedade por ser quem era, o que levou a uma profunda depressão. Não tinha mais vontade de nada. Só conseguia pensar em tirar sua própria vida. Tentou outra vez e a corda arrebentou e a sua dor não cessou.
No trabalho também sofria mais uma vez por ser quem era, ouvia sussurros de seus colegas questionando sua sexualidade, questionando o seu tamanho e sua cor. Ele não aguentava mais tentar. Ele já não tinha mais força para lutar. Se via perdido no meio da multidão buscando um sentindo para continuar vivendo. Não quis mais. O corte que era superficial dessa vez perfurou sua artéria, e dentro de uma banheira com água quente sentia sua pele queimar e seu coração desacelerar. No seu último suspiro caiu uma lágrima, mas não era mais de dor, era alívio. Ele não ouvia mais. Ele não via mais. Ele não sentia mais. Destruíram quem ele era, ele acabou com quem ele poderia ser. A sociedade questionava. Sua mãe chorava. Seu pai se culpava. Era tarde demais, a bicha passiva gorda preta da favela tinha encontrado paz no seu silêncio eterno.
Diante dessa história, eu te pergunto…
Você conhece o João?
Você conhece algum João?
Você é esse João?
Quer saber mais? Segue lá: @fernandowveiga! Dessa maneira, podemos utilizar essa ferramenta para trocar conhecimentos e para sugestões de temas para a coluna.
Não se esqueça de que o importante é gozar da vida!
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Fernando Veiga
Colunista - Coluna Gozo
Psicólogo e Sexólogo, especialista em Sexualidade Humana com ênfase em terapia e educação. Orienta seus estudos e trabalhos para as temáticas LGBTQIA+. Atua na área clínica com abordagem psicanalítica em atendimentos presencial e online. Psicólogo Social na Assistência Social do Município de Nova Fátima – PR. Trabalha com palestras direcionadas as vertentes da psicologia e sexualidade humana.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional do Coletivo Movimento Construção – Parada LGBTI+ de Londrina.
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