Não é simples estabelecer uma definição única sobre o que significa “ser uma pessoa não-binária” (não binária, ou nãobinária). Mesmo que fizéssemos uma revisão histórica do uso destes termos, retomando o Queer e os movimentos sobre inconformismo de gênero, provavelmente a definição que encontraríamos não contemplaria totalmente a grande diversidade de identidades que se colocam dentro deste guarda-chuva que é a Não-Binariedade de Gênero.

Particularmente, tenho um apreço pessoal pelo uso desta palavra composta. E, quando paro para pensar que a própria questão da dificuldade de dar definições ao termo talvez esteja relacionada com o quanto ele consegue ser abrangente, a curiosidade da busca por delimitar um significado dá lugar a uma satisfação por entender que a não-binariedade é exatamente sua própria definição. Uma definição que ao invés de delimitar um lugar, delimita, exatamente, um não-lugar, uma não-coisa. Ou melhor, não delimita. Trata-se de um não pertencimento e identificação com o padrão que para muitos é absolutamente natural: que devemos ser somente homens, ou somente mulheres.

Contudo, quando olhamos para a questão com mais atenção, percebemos que não se trata somente de não ser mulher nem homem. Na verdade, a não-binariedade pode vir de muitas formas. E nesse sentido lhe convido a visualizar a imagem que estampa a coluna de hoje: a bandeira amarelo-branco-roxo-preta, que apesar de provavelmente não ser do conhecimento de todes, é a bandeira do Orgulho Não-Binário.

Atentando-se agora nas quatro cores que compõe esse símbolo, nos aprofundemos em pelo menos quatro formas de identificação que fazem parte da diversidade de gêneros fora da binariedade (“gêneros não-binários”), reconhecendo, contudo, que não são os únicos e que se configuram muitas vezes em mesclas de uns com os outros em infinitas combinações e narrativas:

O preto – simboliza a não identificação com a ideia de gênero. O sentimento de que o conceito de gênero não lhe cabe, ou a ausência de identificação com algum gênero específico são formas de se entender essa possibilidade. Essa cor é muitas vezes associada, exatamente, às pessoas não-binárias agênero. Ainda assim, isso não necessariamente tem relação com a forma como essus não-bináries se expressam, que roupas vestem. Conheço, por exemplo, agêneros que se expressam de forma “mais masculina”, “mais feminina”, “mais andrógina”. Independentemente da forma como cada indivíduo externaliza isso, não significa que ele se identifique exatamente com algum gênero associado à sua expressão.

A cor roxa – simboliza os gêneros que estão dados dentro da ideia de masculino-feminino. Essa cor é muitas vezes associada a ideia de fluidez, multiplicidade de experiências de identificação. Está aqui contemplade alguém que se identifique, por exemplo, ao mesmo tempo como homem e como mulher, alternando ou não entre a intensidade de um ou outro, por vezes se identificando com somente um, por vezes com somente outro ou, qualquer combinação dessas ideias. Mesmo aquelus que se identificam, por exemplo, 99% como mulher, mas 1% como homem, também se encaixariam aqui, e por mais que “a maior parte” de sua identificação seja com mulher, esse indivíduo poderia também se identificar como uma pessoa não-binária.

O branco – simboliza a identificação com mais de um gênero. Estão aqui contempladas desde pessoas que se identificam com dois gêneros (como no exemplo anterior, de alguém que se identifica como homem e mulher, podendo utilizar o termo bigênero, mas não somente), com três, quatro, cinco gêneros, até não-bináries que têm uma experiência de identificação tão múltipla que chega a ser impossível enumerar e dar nome a todos seus gêneros. Notem, como já apontei anteriormente, esses conceitos podem se relacionar, se sobrepor e se combinar, de forma que alguém que se identifique com mais de um gênero, mas que entre suas identificações visualize a importância dos conceitos de “masculino” e “feminino”, pode estar contemplada tanto pela faixa branca quanto pela roxa.

E, no topo da bandeira, temos a faixa amarela. Esta cor simboliza todo e qualquer gênero que está dado fora do conceito binário, que não se relaciona com algo entre o masculino e feminino ou entre a feminilidade e masculinidade. Um exemplo que sempre retomo para explicar essa questão é o de uma velha amiga que, se identificando como travesty, entende que seu gênero não diz respeito a “algo entre homem e mulher”, tampouco sobre ser mulher unicamente. Por mais que sua travestilidade tenha a ver com a performance de um tipo de “feminilidade”, ela está extremamente distante, ou melhor, não tem nada a ver, com “ser mulher”. A pessoa se identifica única e exclusivamente como travesty, como uma “terceira opção” diante da lógica dicotômica. A partir de narrativas como essa encontramos diversas pessoas que também se identificam como travestys e que se sentem contempladas com a ideia da não-binariedade. Há, ainda, travestys que se identificam enquanto mulheres, a partir da sua travestilidade ou não. Portanto, é uma questão de como a pessoa se identifica, da forma como ela entende para si a importância de certos conceitos na composição de quem ela é.
Porém, esse tipo de ‘travestilidade” não é a única forma de se encaixar nesta categoria representada pela faixa amarela. Em meio a isso há pessoas que se identificam com gêneros por vezes tão complexos que seriam impossíveis de serem explicados, há pessoas que se identificam com gêneros cuja explicação possa estar relacionada a um elemento da natureza, uma cor, uma ideia e, ainda outras que têm explicações tão pessoais para seu(s) gênero(s) que os distinguem de qualquer outra forma já antes narrada. Ao final, é tudo exatamente sobre isso: identificação. É sobre encontrar formas de se entender e se explicar, para si próprio e para o mundo.

É em meio a isso que eu vejo a beleza da não-binariedade de gênero: ao longo da história, das diversas civilizações e agrupamentos humanos, sempre se viu manifestações dessa diversidade de gêneros, não necessariamente presa ao padrão mulher-homem. Contudo, nunca se viu tantas pessoas podendo se identificar com estas ideias que fogem a norma, podendo viver suas realidades plenamente, questionando o padrão com suas próprias existências. Exatamente porque há, em todo lugar, normas sociais que tentam limitar e muitas vezes reduzir a(s) existência(s) humana(s) a padrões que são pequenos demais para essas existências. Como em toda situação em que algo é colocado em um espaço menor do que deveria, há uma força interna para sair, se libertar.

Essa coluna quinzenal é mais uma manifestação da resistência contra forças que tentam nos impor uma realidade única. É mais um ato de rebeldia diante de um sistema que diz que precisamos nos adequar a norma. Um espaço para aprender, questionar e se rebelar. Essa é a ANTINORMA.

Urse Lopes Brevilheri

Urse Lopes Brevilheri

Colunista - Coluna Antinorma

Graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina. Colaboradora do Laboratório de Estudos sobre Religiões e Religiosidades (LERR-UEL). Extensionista pelo projeto Práxis Itinerante.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional do Coletivo Movimento Construção – Parada LGBTI+ de Londrina. 

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