
Recentemente o Brasil se comoveu com o quadro estreado por Drauzio Varella, no programa Fantástico da Rede Globo, que apresentava a realidade de mulheres transexuais e travestis nos presídios masculinos.
Dentre as histórias relatadas, destacou-se a de Suzy, uma mulher transexual que estava sem receber visita há mais de sete anos, o médico aproveitou a oportunidade para relatar a solidão de mulheres trans, e ao perceber a emoção no discurso da detenta, lhe ofereceu um abraço.
Como podemos verificar na reportagem completa abaixo:
A partir desse episódio, diversas pessoas manifestaram empatia pelo caso através das redes sociais, com mensagens de apoio e solidariedade para aquelas mulheres que vivenciam sua sexualidade de maneira dolorosa e solitária.
E apesar de muitos saberem da realidade de mulheres transexuais e travestis, não apenas nos presídios, mas em nossa sociedade, a reportagem repercutiu nacionalmente, fomentando um processo de análise sobre a realidade desse grupo.
Com a comoção do caso, houve uma mobilização da população, para que ela pudesse receber cartas, inclusive o governo paulista chegou a divulgar o endereço da unidade que ela está. Houve até uma escola que desenvolveu uma atividade com as crianças, produzindo cartas para Suzy, visando amenizar tamanha dor e sofrimento, além disso, muitos enviaram produtos não apenas para ela, mas também para outras que se encontram nesta situação.
Foi realmente gratificante ver que a nossa sociedade, não estava apenas visualizando aquela mulher como individuo desviante da norma social, devido ser transexual, mas sim como um ser humano, que através da sua fala demonstrou solidão em não ter contato com o mundo exterior.
No entanto, de repente toda essa história acabou tomando um rumo triste e de grande possibilidade de análise do comportamento de pessoas que expõem através do seu discurso os preconceitos enraizados em nossa sociedade.
Tudo começou quando divulgaram nas redes sociais, que Suzy cometeu um crime hediondo em 2010, ao estuprar e estrangular um menino de nove anos, e por isso estava cumprindo pena por homicídio triplamente qualificado e estupro de vulnerável.
Porém, sabemos que a internet hoje é uma ferramenta de grande poder, e que o tempo todo surgem notícias falsas, contudo, apesar disso, a partir da possibilidade da história ser verídica ou não, o país se dividiu em opiniões a respeito do ocorrido.
Enquanto uns criticavam a atitude da emissora de televisão que transmitiu a matéria, outros demonstravam reprovação no comportamento do Drauzio Varella, ao agir de maneira empática diante a situação, além dos que utilizaram do momento para expressar seu preconceito, atacando a Suzy por sua identidade de gênero, teve aqueles também que questionaram como a família do menor reagiu à tamanha repercussão.
Entretanto, alguns tiveram outra percepção, compreendendo o fato, e percebendo que apesar do erro, era apenas alguém que necessitava respeito, e que a mesma já estava cumprindo pena pelo crime.
Os internautas começaram a questionar a emissora que transmitiu a matéria, por colocar uma criminosa em posição de vítima, comovendo centenas de pessoas com a história relatada. Buscando também, compreender o comportamento do médico ao ser solidário com Suzy, interrogando se sabiam sobre os crimes que a mesma cometeu, e que não poderiam divulgar a história da maneira que ocorreu.
Diante das possibilidades de análise desse episódio, diversas discussões foram surgindo, nos levando ao questionamento de como realmente podemos visualizar o ocorrido e compreender a forma que a sociedade interpreta não apenas o crime, mas o julgamento de todo o contexto.
Drauzio Varella foi o primeiro a manifestar sua opinião sobre a situação, divulgando uma nota em sua conta no Twitter, e alegando que em momento algum questionou o crime que Suzy cometeu, além disso, expôs que não era o objetivo da matéria, e que ele é medico, e não juiz para julgar a situação.

Em seguida, o Jornal Nacional apresentou a nota do médico, e justificou que o objetivo da matéria não era analisar os crimes cometidos pelas detentas, e que a emissora não buscou os motivos que levou as mulheres para o presídio. Além disso, divulgaram um vídeo de Drauzio Varella relatando sobre o acontecido, e pedindo desculpas pela família da criança.
Abaixo podemos ver a reportagem na íntegra:
Quando realmente foi verificada a veracidade do crime, a advogada de Suzy, Bruna Paz Castro, declarou que a encontraria e lhe informaria toda a repercussão de sua história, e que através da autorização de sua cliente, divulgaria maiores informações sobre o caso.
Foi quando Bruna disponibilizou para a mídia uma carta escrita por Suzy, relatando que o programa não questionou seus crimes, e demonstrando arrependimento pelo o que fez, disse também que tem ciência de seu comportamento, e que está pagando pelo o que fez.

Com todas essas informações, surge um debate social não apenas em relação ao comportamento de Suzy, mas também de como percebemos essas mulheres transexuais e travestis em nossa sociedade e de que maneira estamos analisando sua realidade.
Nada justifica o crime cometido por Suzy, e o intuito não é amenizar a situação, transformar a mesma em vítima, ou defender o que ela fez. Além disso, é impossível mensurar a dor da família que sofreu com toda essa tragédia. Porém, o objetivo da interpretação deste episódio é analisar a forma como estamos julgando e condenando não apenas o crime, mas sim, a personagem principal dessa história.
Afinal, Suzy é uma mulher transexual e negra, e ao verificarmos todo o contexto social, podemos perceber que as mulheres já são vitimas da cultura do machismo, ademais, analisamos também a influência que sua pele reflete, e o discurso transfóbico de uma sociedade que impõe regras e padrões.
Sendo assim, iniciamos nosso questionamento ao perceber que há outras histórias trágicas que também tiveram uma notoriedade nacional, e até mesmo, internacional, como o caso de Suzane Von Richthofen, uma menina cisgênero, branca e de família rica, que foi responsável pelo assassinato de seus pais com ajuda de seu namorado e cunhado, e apesar de chocar toda a sociedade, os responsáveis já estão em processo de liberdade, e até viraram personagens de um filme que em breve estará em cartaz, e que promete ser campeão de bilheteria.
Além disso, há também o caso do goleiro Bruno, acusado de matar sua ex-amante, a modelo Eliza Samudio em 2010, os relatos do crime chocou a todos, toda via, hoje ele está respondendo o processo em regime semiaberto domiciliar, já recebeu convites para voltar aos gramados, e ainda é visto por muitos como ídolo.
Então será que a história da Suzy teria outro fim, se ela não fosse uma mulher transexual e negra?
Pois, se analisarmos de forma estatística, em 2016 a ONG Transgender Europe (TGEu), relatou que o Brasil matou no mínimo 868 transexuais e travestis e nos últimos oito anos, liderando o ranking dos países que mais mata transgênero no mundo.
Além do mais, de acordo com relatório divulgado em janeiro de 2020 pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), no ano de 2019 pelo menos 124 pessoas transgênero, foram assassinadas no Brasil. Ainda de acordo com os dados, a cada dia em 2019, 11 pessoas deste grupo foram vítimas de agressão.
Há também a marginalização de mulheres transexuais e travestis em nosso país, devido à ausência de apoio familiar, a falta de oportunidade na educação e no mercado de trabalho, com isso, muitas acabam entram para o mundo do crime e da prostituição para sua sobrevivência.
Abaixo podemos verificar os crimes cometidos por mulheres trans encarceradas no Brasil, e dados do mercado de trabalho e da educação para essa população.


Como dito anteriormente, o motivo desses questionamentos não é justificar o crime cometido por Suzy, mas, compreender a realidade não apenas dela, e sim de todas as mulheres transgênero que vive em nossa sociedade em situação de vulnerabilidade social e econômica.
Realmente sabemos que foi um crime bárbaro, e que a mesma deve pagar pelo o que cometeu, inclusive, ela já recebeu sua sentença e está cumprindo as medidas sociais necessárias.
Então apesar de todos poderem ter sua opinião sobre o caso, e discursar de acordo com suas ideologias, devemos perceber que antes dela ser uma criminosa, ela é um ser humano, que possui suas dores e seus arrependimentos.
Pois assim, como deram novas oportunidades diante outros episódios, devemos analisar os nossos comportamentos perante situações como essa, não é nosso dever julgar o outro, até mesmo porque não compreendemos e não sabemos o contexto de vida que levou não apenas Suzy a cometer esse crime, mas qualquer outra que tenha agido de maneira inadequada diante a sociedade.
Para isso existe a justiça no nosso país, que apesar de valha é de sua responsabilidade julgar crimes como esse, enquanto isso, nosso papel é olhar a nossa volta e observar o que estamos fazendo para que as pessoas transgênero possam ter oportunidades de escrever outras histórias para sua vida.

Fernando Veiga
Colunista - Coluna Gozo
Psicólogo e Sexólogo, especialista em Sexualidade Humana com ênfase em terapia e educação. Orienta seus estudos e trabalhos para as temáticas LGBTQIA+. Atua na área clínica com abordagem psicanalítica em atendimentos presencial e online. Psicólogo Social na Assistência Social do Município de Nova Fátima – PR. Trabalha com palestras direcionadas as vertentes da psicologia e sexualidade humana.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional do Coletivo Movimento Construção – Parada LGBTI+ de Londrina.
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